Fazer um retiro de meditação foi definitivamente um ponto alto da minha experiência na Tailândia. Conviver com monges dentro de um monastério budista me trouxe uma riqueza enorme de aprendizados sobre a cultura tailandesa e entendimento sobre os ensinamentos de Buda, conforme são estudados e absorvidos pela escola Theravada.
Existem ínumeros monastérios pela Tailândia onde leigos tailandeses e estrangeiros podem fazer um retiro de meditação vipassana. É prática comum de turistas interessados em meditação e há várias modalidades de retiros, com diferentes níveis de rigidez. São totalmente gratuitos e operam à base de doações dos frequentadores e moradores da região.
Retiro-escola
Na maioria dos retiros de vipassana o silêncio é mandatório e são proibidos livros e escrita em cadernos. Optei pelo Wat Pa Tam Wua pela flexibilidade e proposta de retiro-escola. O silêncio é totalmente opcional – quem está em silêncio usa uma plaquinha indicativa. Eles dispõe de uma biblioteca com centenas de livros em diversas línguas sobre vipassana e budismo e alguns monges falam inglês e se dispõe a conversar e responder perguntas.
Diferente de um retiro estritamente meditativo, no Wat Pa Tam Wua encontramos uma proposta mais educativa. Mesmo com uma programação extensa de muitas horas de meditação por dia, há um espaço para leitura e troca de ideias com os monges e colegas. Esse equilíbrio entre os dois momentos foi super importante pra mim e apesar de ter vontade de fazer um retiro mais estrito, sinto que saberia muito menos sobre as práticas budistas hoje sem esse espaço de aprendizado.
Chegando ao Wat Pa Tam Wua
O monastério fica em uma região de serra no noroeste da Tailândia, muito próximo à fronteira do Myanmar, na província de Mae Hong Son. Vindo de Chiang Mai são algumas horas de estrada.
Peguei uma van na Arcade Bus Station em Chiang Mai com destino a Pai. São três horas de viagem e o custo é de 150 baht (cerca de 20 reais). Chegando em Pai peguei outra van com destino a Mae Hong Son pelo mesmo valor. Também é possível pegar um songthaew amarelo por 100 baht (por volta de 13 reais), só é bem menos confortável.
São mais 1h30 de viagem e em ambos os casos é preciso avisar ao motorista que você está indo para o “Forest Monastery”, ele vai parar o carro no meio do caminho entre as duas cidades pra você descer.
Somos deixados na beira da estrada em frente à uma placa indicando o caminho para o monastério. É preciso andar pouco mais de um quilômetro até lá, mas é impossível se perder na estradinha.
Nessa caminhada deixamos pra trás o barulho e confusão de estrada e vamos adentrando nesse reino de paz. O visual montanhoso de tirar o fôlego, vegetação muito bem cuidada, silêncio quase completo com exceção dos sons da floresta e cachoeira. Há um ar de familiaridade que me lembrou muito da serra fluminense, me senti super em casa.
A acolhida
O monastério está aberto todos os dias da semana e recebe qualquer pessoa sem aviso prévio. Basta chegar lá (preferencialmente durante o dia) e você será muito bem acolhido. Não existe agendamento ou fila. A estadia mínima é de três noites e a máxima de dez. Mas conheci pessoas que acabaram morando no Wat Pa Tam Wua por meses, tudo depende do propósito e de conversa.
Assim que cheguei fui recebida pela ilustre figura do Mr. Pong, leigo residente do monastério que encaminha todos os recém chegados a seus locais de descanso. É ele quem informa sobre todo o esquema de atividades e realiza o registro de cada visitante (não deixe de levar o passaporte).
O Mr. Pong é uma figura super alegre, fala inglês muito bem e é quem resolve qualquer problema com os estrangeiros por lá. Orienta sobre as normas de conduta e tira todas as dúvidas.
Depois de realizar meu registro fui encaminhada junto com outra visitante para nosso kuti. Os kutis são essas pequenas casinhas de madeira, muito simples. Há um espaço para dormir e tem um banheiro com chuveiro (quente!!). Nos entregaram um pequeno travesseiro, cobertor e um finíssimo colchonete. Nos acomodamos e eu nem acreditei que ia ficar naquela belezinha.
Como explico nesse post, cheguei no Wat Pa Tam Wua numa semana muito agitada. Geralmente há kutis suficientes para todos. Quando não, existem quartos comunais bem maiores para dividir. Na minha estadia eu comecei dormindo num kuti, depois numa barraca no gramado e por último me colocaram num quarto comunal. Mas foi um evento totalmente atípico!
Aproveitei a movimentação e atitude despojada dos monges nesses últimos dias da minha estadia para fotografar toda a rotina do monastério. Eles liberaram as câmeras para fazermos registros de maneira discreta, uma vez que a ocasião era muito especial.
Os Oito Preceitos
As regras de conduta a serem seguidas no monastério são simplesmente os oito preceitos budistas. Devem ser respeitados em qualquer retiro de meditação vipassana, com adição ou não da restrição da fala e leitura.
- Abster-se de matar seres vivos;
- Abster-se de tomar o que não é dado livremente;
- Abster-se do comportamento não casto;
- Abster-se de mentir e enganar;
- Abster-se de álcool e tóxicos que causem negligência;
- Abster-se de comer nos horários proibidos (isto é, após o meio dia);
- Abster-se de dançar, cantar, ouvir música, ver espetáculos de entretenimento, de usar ornamentos, usar perfumes e embelezar o corpo com cosméticos;
- Abster-se de deitar em leitos elevados ou luxuosos.
Portanto as refeições são servidas até meio dia e são totalmente veganas. Todos devem vestir apenas vestes brancas, o que é garantido já que eles possuem uma enorme quantidade de roupas brancas para emprestar aos visitantes. Usou, lavou, devolveu. Assim ninguém precisa investir em roupas novas para meditar. Literalmente tudo é gratuito.
É mantida uma cestinha com crachás à disposição para todos aqueles que desejam manter o silêncio durante a estadia. Neles está escrito “Silent, but happy” (em silêncio, mas feliz), o suficiente para todos ao redor respeitarem seu espaço e não lhe dirigirem a palavra.
Rotina do monastério
É impressionante o quanto de meditação se pratica em um único dia no Wat Pa Tam Wua. O melhor é que ainda sobram momentos preciosos para leitura e retirada de dúvidas, e isso só é possível pela programação super estrita que deve obrigatoriamente ser seguida por todos os visitantes.
Horário | Atividade |
05h00 | Acordar – Praticar meditação e entoação de cânticos no seu Kuti |
06h30 | Oferenda de arroz aos monges no Dining Hall |
07h00 | Café da Manhã |
08h00 | Prática de meditação no Dhamma Hall |
10h30 | Oferenda de arroz aos monges no Dining Hall |
11h00 | Almoço |
13h00 | Prática de meditação no Dhamma Hall |
16h00 | Limpeza do monastério |
17h00 | Tempo livre |
18h00 | Entoação de cânticos e meditação no Chanting Hall |
20h00 | Prática de meditação individual nos Kutis |
22h00 | Hora de dormir |
Ritual matinal
Esse é um dos momentos mais gostosos do dia. Acordamos bem cedinho antes do nascer do sol, meditamos individualmente nos dormitórios e depois seguimos para o Dining Hall para realizar a cerimônia de oferta de arroz aos monges.
Na mesa do café da manhã temos um panelão enorme cheio de arroz. Cada um pega um pequeno prato com arroz, se dirige ao salão e senta numa fileira. Silêncio total.
Depois de alguns minutos o silêncio é interrompido pela figura super carismática do abade Ajahn. Ele dá bom dia pessoalmente para cada visitante com um sorriso largo no rosto. Faz comentários sobre o clima, pergunta como foi a noite de todos e a meditação matinal de cada um – de forma sarcástica, sabendo que a maioria de nós ficou dormindo até a hora do café.
Os monges finalmente chegam ao salão, cada um com sua tigela de mendicância. Eles vem passando por nós com as tigelas e vamos dando uma colherada de arroz para cada um. No fim todos os monges estão abastecidos de arroz para o café da manhã a partir de uma pequena contribuição de cada visitante. Um ato simbólico que fazia todo o sentido naquele lugar.
Depois disso voltamos para as mesas de refeições e nos servimos.
Alimentação
Fiquei positivamente surpresa com a comida que nos serviram lá. Simples, saborosa, abundante. A base é o arroz, há uma variedade de ensopados de legumes, mock meats e dependendo do dia algumas opções de frutas também.
A quantidade era farta e todos podiam repetir sem problemas – importante, já que nos alimentávamos só até o meio dia, cada refeição deveria ser muito farta!
Eu confesso que levei alguns pacotes de oleaginosas na mochila temendo passar fome com o jejum ao longo do dia. Incrivelmente as duas refeições bem feitas foram suficientes para passar bem o resto do dia sem ficar angustiada pensando em comida.
Além do café da manhã e do almoço eles oferecem chás, café e chocolate quente o dia inteiro! Existe um tanque de água quente para se servir a qualquer momento. Tomar um chá pela noite e pegar um livro emprestado pra ler era a pedida ideal.
As práticas meditativas
Conforme a programação acima, tínhamos grandes blocos de pelo menos 2 horas de meditação. Nossa prática era orientada pelo monge Phra Anek Thanissarapoti, um professor realmente fantástico. Cada sessão de meditação era uma verdadeira aula, não só sobre vipassana, mas também sobre os ensinamentos budistas em geral.
Phra Anek falava em tailandês e inglês e introduzia um conceito diferente em cada aula. Algumas vezes fazia uso até de power point, o que era totalmente inesperado. O fato é que suas aulas realmente se aprofundavam no propósito da vipassana e os tipos de estados de consciência que devemos buscar alcançar. Era muito mais fácil de entender nossas dificuldades durante a prática e ajudou a nos livrar da carga de expectativas que nossa formação ocidental acaba colocando sobre o sucesso na meditação.
Fazíamos basicamente três blocos de meditação numa mesma sessão: meditação caminhando, sentados e deitados. Essa última era particularmente difícil pela manhã – não raro alguém era pego roncando.
Ao fim da meditação da tarde nos era concedido um tempo para fazer perguntas. De forma mais íntima, ficávamos próximos aos monges (embora só os homens pudessem ficar nas fileiras imediatamente ao lado deles) e cada um poderia falar sobre sua prática, dificuldades e dúvidas. Os monges respondiam cada um com muita tranquilidade e interesse.
Phra Anek é tão empolgado divulgar os ensinamentos da filosofia budista que escreveu um livro-manual especialmente para os visitantes do monastério, chamado Walk to be the knower.
Fiquei encantada com tanto empenho para passar o conhecimento à frente. Na biblioteca encontrei uma pilha do livro e perguntei ao Mr. Pong se poderia pegar emprestado pra ler. Ele sorriu e disse que o livro era meu. Pediu apenas que passasse para outra pessoa quando terminasse de ler ou ajudasse a traduzir esses ensinamentos na minha língua. Pretendo traduzir e postar grandes trechos desses ensinamentos por aqui.
Entoando cânticos pela primeira vez
Uma das atividades que eu mais gostava era a entoação de cânticos antes da última meditação do dia. A primeira vez foi estranho e confuso, mas aprendi a apreciar muito essa prática e carrego ela comigo até hoje com muito carinho.
Os budistas theravada, diferente de outras escolas, não costumam trabalhar com mantras. A um estrangeiro desavisado pode parecer ser o caso, mas na verdade tratam-se de cânticos. São longos textos dos ensinamentos budistas cantados em páli.
Foi através desses cânticos que os milhares de suttas foram preservados ao longo dos séculos antes de serem propriamente registrados em linguagem escrita, compondo o que hoje é chamado de Cânone Pali. É por isso que muitas vezes quando lemos um sutta estranhamos o formato e a quantidade de repetições de frases: essa estrutura é consequência da oralidade.
No Wat Pa Tam Wua a prática de entoação de cânticos é adaptada para o público leigo tailandês e estrangeiro. Os cânticos são simplificados e cantados em três línguas ao mesmo tempo: páli, thai e inglês. É muito engraçado no início, ninguém faz ideia do que está fazendo. Mas em alguns minutos de observação e leitura pegamos o ritmo e conseguimos praticar com o grupo, mesmo sem jamais ter falado uma palavra de páli ou thai.
Eu tinha ouvido monges entoando cânticos em muitos templos mas jamais imaginei que me veria fazendo o mesmo, nem fazia ideia do que aqueles sons transmitiam. Fiquei muito impactada com o poder dessa prática e estudei mais sobre eles após minha volta do monastério, quando pude conhecer o conceito de paritta.
Me dediquei a traduzir para o português o Paritta Metta Sutta da melhor maneira que pude. Hoje esse paritta me acompanha diariamente e procuro compartilhá-lo sempre que possível, pois ele provoca uma reflexão amorosa sobre todos os seres, além de carregar palavras entoadas exaustivamente há milênios, assim como a oração do Pai Nosso e Ave Maria aqui no Ocidente.
Um até logo
Como Buda nos ensinou, a impermanência é uma das três marcas da existência. Minha experiência vivendo num monastério chegou ao fim.
Vivi momentos que guardo em um espaço muito especial no meu coração e espero um dia poder voltar a visitar essa comunidade única no mundo, como eles gostam de chamar: home away from home (lar longe de casa).
Recomendo fortemente a todos que planejam uma viagem à Tailândia que reservem alguns dias para esse aprendizado. Em relação aos custos, quem se hospeda em Chiang Mai gasta em torno de 70 reais para ir e voltar do monastério e ainda pode aproveitar para conhecer Pai.
Sua estadia é 100% gratuita e a doação é espontânea e anônima. Existem caixas para doações espalhadas e envelopes para você depositar a sua doação de forma discreta, sem cobranças, no momento que preferir.
A contribuição é fundamental para manter o retiro funcionando, mas cada um tem a oportunidade de doar de acordo com seu bolso. Doando pelo menos 100 baht (13 reais) por dia de estadia você já cobre razoavelmente os gastos da sua presença sem ser mão de vaca – o custo de vida lá é bem baixo. Mas é claro que pode doar mais! Lembre-se de quanto você gasta em um dia de turismo.
Deixando o Wat Pa Tam Wua
Para voltar do monastério basta avisar ao pessoal. Todas as manhãs um songthaew amarelo passa por lá para buscar visitantes.
A quantidade de pessoas e carga de produtos que cabe num desses é impressionante! É uma viagem um pouco longa e desconfortável de volta à Pai pois o songthaew é parador e vai deixando/buscando mercadorias no caminho.
No fim das contas somos deixados na rua principal de Pai, onde podemos pegar uma van de volta para Chiang Mai e definitivamente voltar para a vida na cidade.
4 comentários