O conceito de Qi é um dos elementos mais importantes e amplamente interpretados da filosofia chinesa. Como uma noção compartilhada por todas as escolas, acredita-se que o Qi seja uma força dinâmica, onipresente e transformadora que anima tudo o que existe no universo. A respiração, a força que impulsiona o fluxo sanguíneo, a comida que se come, a força da mente – tudo isso é entendido em termos de Qi.
Embora essa ideia possa parecer desconcertantemente abstrata e filosófica, o Qi é um conceito prático destinado principalmente a ser trabalhado para a manutenção do bem-estar físico e para a promoção de um constante desenvolvimento espiritual.
Talvez a primeira introdução do Qi à grande massa do mundo ocidental tenha sido através da série cinematográfica Star Wars, que apresentou de forma didática a ideia da “Força”. A explicação sobre a “Força” é dada por Yoda no filme O Império Contra Ataca (1980).
Então Yoda movimenta as mãos em uma posição clássica de direcionamento de Qi – mas aqui usando a “Força” – e faz emergir e levitar a nave espacial afundada de seu pupilo Luke Skywalker. Clique para assistir a cena (em inglês).
Claro, a “Força” do universo de Star Wars não traduz exatamente a ideia do Qi, mas ilustra de forma muito cativante e acessível a percepção aguda expressa pela cosmovisão oriental do Qi como constituinte de tudo o que há, como motor por trás de todas as transformações.
A palavra Qi
A palavra é expressa no Ocidente por Qi, Chi ou Ki. A primeira, Qi, é a transliteração do chinês para o alfabeto latino. A segunda, Chi, é a pronúncia da palavra em chinês. Já a terceira é a transliteração de sua versão japonesa, que se pronuncia da mesma forma, Ki.
O idioma japonês contém mais de 11.442 usos conhecidos de Ki. Basta dizer que a palavra Ki está profundamente enraizada na mente lingüística e cultural coletiva do Japão. Até a saudação padrão “Genki desu ka?” (元 気 で す か), traduzida para o português “Como vai você?”, significa literalmente “Como está seu ki?”
É possível que alguns textos que se referem ao Qi tenham mais de quatro mil anos, embora isso seja difícil de provar e o debate esteja longe de ser encerrado. No entanto, existe um consenso geral de que Guoyu (國語), Discurso dos Estados, seja o livro mais antigo com referência ao Qi. Dados de 2.600 anos atrás.
O ideograma 氣 (Qi) indica alguma coisa que possa ser material e imaterial ao mesmo tempo. Isso demonstra claramente que o Qi pode ser tão rarefeito e imaterial como o vapor, e tão denso e material como o arroz.
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É muito difícil traduzir a palavra Qi, sendo que muitas traduções diferentes foram propostas como “energia”, “força material”, “matéria-energia”, “força vital”, “força da vida”, “poder vital”, “poder de locomoção”, mas na realidade não existe um termo que se aproxime de sua Essência (Jing) exata.
A física do Qi
Qi, o “produto” do Tao, fica no limiar entre o que chamamos de material e imaterial. É a base de todos os fenômenos no universo e proporciona uma continuidade entre as formas material e dura e as energias tênues, rarefeitas e imateriais. Cada coisa e não-coisa é permeada e governada pelo Qi. O próprio universo é uma teia de Qi.
O Qi refere-se à “tensão” entre os opostos binários da natureza, yin e yang. Nas palavras dos velhos sábios: “Qi reside em tensão”.
Podemos considerá-lo uma noção pré-científica da mecânica quântica. Não distingue as quatro forças fundamentais (gravitação, eletromagnetismo, interação fraca e interação forte), mas acomoda todas elas. Traduzido livremente, poderíamos chamar o Qi de super-éter.
Na física, as teorias do éter propõem a existência de um meio, uma substância ou campo que preenche o espaço, considerado necessário como meio de transmissão para a propagação de forças eletromagnéticas ou gravitacionais, que seria o éter.
“Na filosofia chinesa, a idéia de campo [da física quântica] não está implícita apenas na noção de Tao como vazio e sem forma, e ainda originário de todas as formas, mas também é expressa explicitamente no conceito de Qi”.
Fritjof capra
O físico Fritjof Capra faz uma comparação direta entre Qi e éter. Segundo ele, neoconfucionistas desenvolveram uma noção de Qi que tem a semelhança mais impressionante com o conceito de campo quântico na física moderna.
Além disso, o Qi expressa a continuidade entre matéria e energia. Uma ideia que se alinha ao conceito de equivalência massa–energia: qualquer massa possui uma energia associada e vice-versa. Essa relação é expressa pela fórmula de equivalência massa-energia E=m.c², desenvolvida pelo físico Albert Einstein. Segundo a teoria da relatividade especial, massa e a energia são duas manifestações diferentes do mesmo princípio.
O conceito de Qi por Zhang Zai
Zhang Zai (1020-1077) foi um filósofo cosmologista chinês que trouxe grandes contribuições no desenvolvimento do conceito de Qi como conhecemos hoje.
Para Zhang Zai, o Qi inclui a matéria e as forças que governam as interações entre a matéria, yin e yang. Em seu estado disperso e rarefeito, o Qi é invisível e insubstancial, mas quando condensa, torna-se sólido ou líquido e adquire novas propriedades. Todas as coisas materiais são compostas de Qi condensado: pedras, árvores e até pessoas. Não há nada que não seja Qi. Assim, tudo possui a mesma essência, uma ideia que tem importantes implicações éticas.
As mutações do Qi
O Qi nunca é criado ou destruído; o mesmo Qi passa por um processo contínuo de condensação e dispersão. O filósofo o comparou à água: a água na forma líquida ou congelada permanece como água. Da mesma maneira, o Qi condensado que forma coisas ou Qi disperso mantém seu princípio. A condensação é a força yin do Qi e a dispersão é a força yang. O princípio da mudança é revelado por movimentos sucessivos de yin e yang.
“O Grande Vazio consiste do Qi. O Qi condensa-se para transfomar-se em muitas coisas. Coisas necessariamente se desintegram e retornam ao Grande Vazio”.
A vida humana também é apenas uma condensação de Qi, e a morte a dispersão do Qi: “Todo nascimento é uma condensação, toda morte uma dispersão. Nascimento não é um ganho, a morte não é uma perda… quando condensado, o Qi transforma-se em seres vivos, quando disperso, é o substrato das mutações”.
Todas as coisas são formadas a partir do mesmo Qi e, finalmente, todos compartilhamos a mesma substância. Isso se tornaria a mais famosa doutrina ética de Zhang, a idéia de formar um corpo com todas as coisas. Como Zhang escreveu em “Xi Ming”: “Aquilo que preenche o universo eu considero meu corpo”, “Todas as pessoas são meus irmãos e irmãs, e todas as criaturas são minhas companheiras”.
O Qi na prática
Como vimos, estamos lidando com um conceito extremamente rico e complexo que fundamenta toda a cosmovisão chinesa. Contudo, o Qi também é usado de forma muito prática e entendido como “energia” da maneira como a palavra é usada discurso cotidiano. Por exemplo, quando digo “minha energia está baixa”, estou descrevendo um estado qualitativo muito semelhante ao padrão chinês conhecido como “Qi deficiente”.
Geralmente quando falamos de Qi estamos nos referido ao seu estado mais sutil e rarefeito, não densificado e dificilmente palpável (existem técnicas para melhor perceber o Qi). Por isso a tradução de Qi como “energia” cai bem na maioria das situações práticas, normalmente aplicada em contexto de terapias de cultivo e cura energética.
O conceito Qi na Medicina Chinesa
Tudo o que foi dito sobre Qi aplica-se na Medicina Chinesa, que enfatiza o relacionamento entre os seres humanos e seu meio ambiente, e leva isto em consideração para determinar a etiologia, o diagnóstico e o tratamento. Como esse é um conceito comum na China há muitos séculos, os médicos tradicionais chineses acham o Qi fácil de entender e aceitar, enquanto o mesmo costuma ser ridicularizado pelos médicos ocidentais.
Segundo os chineses, a harmonia no universo e a saúde do ser humano dependem do livre movimento do Qi. Se o Qi estiver impedido de se movimentar, teremos os acidentes ecológicos na natureza e a doença no ser humano.
Os recursos terapêuticos da Medicina Tradicional Chinesa são usados para manter ou recuperar o movimento do Qi no organismo. Podemos afirmar então que o Qi é a “matéria prima” da MTC e dos seus recursos de tratamento.
Há muitos “tipos” diferentes de Qi humano, variando do tênue e rarefeito ao mais denso e duro. Contudo, todos os tipos de Qi são na verdade um único Qi, que simplesmente se manifesta de diferentes formas.
É importante, portanto, observar a universalidade e a particularidade do Qi simultaneamente. Por um lado, há somente um Qi que assume diferentes formas, mas por outro lado, na prática, também é importante apreciar os diferentes tipos de Qi.
O Qi modifica-se em sua forma de acordo com sua localização e função. Embora seja fundamentalmente o mesmo, o Qi coloca “diferentes vestimentas” em diversos lugares e assume inúmeras funções. Por exemplo, o Qi Nutritivo (Ying Qi) existe no interior do organismo. Sua função consiste em nutrir, sendo mais denso que o Qi Defensivo (Wei Qi), o qual localiza-se no Exterior e protege o organismo. O desequilíbrio tanto do Qi Defensivo como do Qi Nutritivo originará diferentes manifestações clínicas as quais irão exigir diferentes tipos de tratamento.
Conforme observação documentada há milhares de anos, padrões naturais de Qi circulam em “canais” pelo corpo, chamados Meridianos (jing luo). Os sintomas de várias doenças são, dentro dessa estrutura, considerados produtos do fluxo de Qi interrompido, bloqueado ou desequilibrado (através dos meridianos do corpo) ou de deficiências e desequilíbrios no Qi de vários sistemas orgânicos como órgãos e vísceras, chamados de Zang Fu.
O praticantes da Medicina Tradicional Chinesa buscam ajustar a circulação do Qi no corpo usando uma variedade de técnicas terapêuticas como a Acupuntura e a Moxabustão, técnicas de manipulação corporal como o Tui ná e o Shiatsu, o uso de medicamentos fitoterápicos, a dietoterapia e a prática de exercícios de Qi Gong.
Conceitos similares em outras culturas
Embora não haja correspondência direta com esse conceito no Ocidente, algumas ideias relacionadas são encontradas em outras culturas. Isso inclui o conceito hindu de prana (que se traduz em “força vital” em sânscrito), bem como o conceito de mana na cultura polinésia. Como sempre, essas semelhanças representam pontos de correspondência e devem ser cuidadosamente avaliadas em seus próprios contextos antes de serem usadas como base para qualquer conclusão.
REFERÊNCIAS DE LIVROS E ARTIGOS
Fundamentos da Medicina Chinesa – Giovanni Maciocia
Prática da Medicina Tradicional Chinesa – Xie Zhufan
Concepts of Qi – Midwest College of Oriental Medicine
Qi, Chi, Ki – Dr. Shen Hongxun
Zhang Zai (Chang Tsai) – Internet Encyclopedia of Philosophy
ZHANG Zai’s Theory of Vital Energy – Robin R. Wang and DING Weixiang
Zhang Zai’s Correct Discipline for Beginners – Alex Scott
Einstein’s relativity theory through Chinese eyes – Jan Krikke
Qi as Entertainment: The Force in Star Wars – Qi Encyclopedia
Qi – New World Encyclopedia
Dao Companion to Neo-Confucian Philosophy – John Makeham
3 comentários
Certamente o mais rico texto sobre o assunto que já li. Parabéns pela pesquisa e elaboração. Em qual das fontes encontram-se as citações do Xi Ming, de Zhang? Fiquei interessado em ler. Obrigado.
Grata pelo elogio! A citação do Xi Ming não encontrei em português, fiz uma tradução livre dos textos em inglês que encontrei. Ele é mais conhecido como “Western Inscription”, é bem curtinho mas muito importante. Incluo aqui três links pra você dar uma olhada: tradução 1, tradução 2, tradução 3. Boa leitura! 🙂