Hoje me proponho a refletir sobre uma temática que gera discussões acaloradas: a taxação da acupuntura como uma pseudociência.
Em 2023, dois divulgadores científicos brasileiros lançaram um livro em que classificam a acupuntura como prática pseudocientífica, usando as palavras bobagem e absurdo para descrevê-la. Tal acusação causou um burburinho e ocupou espaço considerável na mídia hegemônica, mas vi pouquíssimas discussões que realmente se debruçassem sobre o cerne da questão, o que me inquietou.
Vamos entender melhor o quão problemática é essa abordagem vexatória e o quanto ela fere a própria natureza da ciência enquanto estandarte do conhecimento humano.
O problema da demarcação
Uma questão central da epistemologia, ramo da filosofia que se ocupa do estudo do conhecimento, é o chamado problema da demarcação. Trata-se da definição dos critérios pelos quais se difere a ciência dos saberes não científicos, um debate de grandes implicações sociais e políticas.
A falseabilidade proposta pelo filósofo Karl Popper, por exemplo, é um dos critérios predominantes a serem observados para qualificar uma teoria como científica. Segundo Popper, para ser classificada como ciência, uma teoria deve ser testável, isto é, sujeita a ser submetida à refutação por evidências empíricas. Esse princípio fundamenta o método científico moderno e, por extensão, a medicina baseada em evidências, cujas contribuições para a saúde humana são extraordinárias e inegáveis.
Ora, não é preciso pensar muito para chegar à conclusão de que a acupuntura não se encaixa nesse critério, uma vez que opera partir de uma ótica que difere do monismo materialista, sendo baseada em conceitos como Qi, Jing, Shen, Yin e Yang, Wu Xing, entre muitos outros. Esses conceitos não são metáforas, mas categorias epistêmicas próprias, que evidentemente não são classificáveis como falseáveis.
Apontar para a medicina tradicional chinesa e definí-la como não científica chega a ser risível, honestamente, pois se trata de uma obviedade. Na minha opinião, esse não deveria ser o cerne da polêmica gerada pelo livro, e sim a tendência do pensamento hegemônico ocidental em ser tão etnocêntrico e reducionista que descarte o valor de tudo aquilo que não se conforme ao modelo científico. Contudo, essa minha crítica ao pensamento positivista, apesar de atual, não tem nada de inovadora e já foi amplamente discutida no meio acadêmico.
Posso ter dado impressão de que prego uma nova metodologia em que a indução é substituída pela contra-indução e onde aparecem teorias várias, concepções metafísicas e contos de fadas, em vez de aparecer o costumeiro binômio teoria/observação. Essa impressão seria, indubitavelmente, errônea. Meu objetivo não é o de substituir um conjunto de regras por outro conjunto do mesmo tipo: meu objetivo é, antes, o de convencer o leitor de que todas as metodologias, inclusive as mais óbvias, têm limitações.
Paul Feyerabend
O filósofo Paul Feyerabend desponta como um grande crítico das metodologias científicas rígidas e suas reflexões influenciaram a escola pós-positivista na filosofia da ciência. Feyerabend desafia a supremacia da ciência sobre outras formas de conhecimento e defende uma abordagem mais inclusiva e pluralista para a compreensão do mundo, uma postura que não passa por desvalorizar o pensamento científico, mas sim por alertar para os perigos de se estabelecer um dogmatismo metodológico na ciência.
Orientalismo e as epistemologias do sul
A acupuntura enfrenta atualmente um duplo problema: por um lado é deslegitimada por não se encaixar nos critérios de demarcação da ciência, por outro, sofre uma constante distorção de seus princípios em uma tentativa de ocidentalização, o que prejudica suas técnicas em vários níveis. Esse fenômeno se insere em um contexto maior de colonialismo epistêmico, tema sobre o qual Edward Said e Boaventura de Sousa Santos se debruçaram, denunciando a imposição do pensamento ocidental sobre saberes originários de povos que sofreram o processo de colonização.
Em Orientalismo, um dos textos fundadores dos estudos pós-coloniais, Said descreve como o Ocidente construiu uma imagem distorcida do Oriente, estabelecendo uma hierarquia em que o pensamento europeu era considerado superior e subjugando a lógica própria do conhecimento oriental. No caso da acupuntura, essa distorção se manifesta na insistência em traduzir as funções dos pontos de acupuntura em termos biomédicos, reduzindo-os a localizações anatômicas que, quando estimuladas com agulhas ou moxabustão, produzem reações bioeletroquímicas.
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Ninguém questiona hoje o valor geral das intervenções no real tornadas possíveis pela ciência moderna através da sua produtividade tecnológica. Mas este fato não deve impedir-nos de reconhecer outras intervenções no real tornadas possíveis por outras formas de conhecimento.
Boaventura de Sousa Santos
Um outro olhar sobre o colonialismo epistêmico é o de Boaventura de Sousa Santos, que inaugura o conceito de epistemologias do Sul em sua denúncia do processo de marginalização de saberes pela hegemonia científica ocidental. São epistemologias do Sul aquelas que buscam validar conhecimentos, conhecimentos outros, que não aqueles que estão validados pelas epistemologias do Norte global. Ele propõe então a chamada ecologia de saberes, ou seja, a coexistência de múltiplos sistemas epistêmicos sem a imposição de uma hierarquia pré-estabelecida, pois cada um se relaciona com realidades distintas.
Uma incompatibilidade metodológica
Diante da proposta de coexistência de sistemas distintos, é interessante refletir sobre os estudos clínicos realizados para validar procedimentos de inserção de agulhas em determinados pontos do corpo. Na visão do médico epidemiologista Guido Palmeira, “a tentativa de interpretar a acupuntura estritamente em termos de neurotransmissores e respostas neurofisiológicas ignora sua concepção holística, desfigurando seus pressupostos fundamentais”. Eu tendo a concordar que essa é uma abordagem extremamente reducionista, pois os estudos requerem uma padronização do tratamento oferecido, o que na prática é um fazer totalmente antagônico à lógica da medicina chinesa.
A incompatibilidade fica evidente ao esclarecermos que uma mesma doença para a medicina ocidental pode ter múltiplas etiologias na medicina tradicional chinesa. Por exemplo, a lombalgia (dor lombar) pode ser proveniente tanto de uma Deficiência de Qi quanto de uma Estagnação de Qi e Xue, e cada caso requer um tratamento completamente diferente do outro. Diante disso, estabelecer uma padronização dos pontos a serem agulhados para realizar um experimento é como tentar avaliar a eficácia de uma dieta personalizada usando um único cardápio para todos os participantes do estudo – o método invalida a própria essência da intervenção.
Os estudos científicos sobre acupuntura serão de pouca utilidade enquanto persistirem em negar a possibilidade de uma medicina que tem a sua lógica própria, diferente daquela da ciência ocidental.
Guido Palmeira
Entretanto, sou favorável à realização de ensaios clínicos para o estudo de práticas relacionadas à acupuntura, afinal, é possível que hajam descobertas interessantes no campo médico através desses ensaios, só não devem ser elaborados com o objetivo de validar a medicina tradicional chinesa em si. Sendo assim, é preciso que se diferencie claramente uma técnica isolada e adaptada às limitações da metodologia científica – que são enormes também devido à percepção sensorial do paciente, que dificulta o cegamento do experimento – de todo o contexto particular do fazer médico oriental, ou corre-se o risco de cair no erro de invalidar todo um campo do conhecimento por pura ignorância.
A transdisciplinaridade e o pensamento complexo
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Após refletirmos um pouco sobre a problemática, fica bem nítido que a superação do colonialismo epistêmico passa pela transdisciplinaridade entre as diferentes áreas do saber.
O pensamento complexo, ou paradigma da complexidade, é o ramo da epistemologia que propõe o objetivo de conectar sem misturar, e de distinguir sem separar, as várias disciplinas do conhecimento por meio da transdisciplinaridade. Essa perspectiva muito desenvolvida por Edgar Morin, dentre outros acadêmicos, defende uma abordagem multirreferenciada para a construção do conhecimento, o que dialoga e muito com um cenário de coexistência entre medicina ocidental e a medicina tradicional chinesa.
As verdades polifônicas da complexidade exaltam, e serei compreendido por aqueles que, como eu, se asfixiam no pensamento fechado, na ciência fechada, nas verdades limitadas, amputadas, arrogantes. É estimulante arrancar-se para sempre da palavra mestra que explica tudo, da ladainha que pretende tudo resolver. É estimulante, enfim, considerar o mundo, a vida, o homem, o conhecimento, a ação, como sistemas abertos.
Edgar Morin
Essa transdisciplinaridade já ocorre de forma institucionalizada desde a década de 1950 na China, onde hospitais combinam tratamentos farmacológicos e procedimentos cirúrgicos com acupuntura, moxabustão e fitoterapia. Cada abordagem possui um olhar distinto com relação ao corpo humano e suas interações com o ambiente, o que implica em um entendimento muito mais rico dos fatores que envolvem o cuidado com a saúde. Assim, a construção de uma ecologia de saberes só tende a contribuir para a qualidade de vida da população.
Por mais coerência
Por fim, deixo a seguinte sugestão aos meus colegas quanto à uma resposta para as críticas vexatórias da acupuntura: ao invés de buscar refutá-las com evidências científicas de ensaios clínicos pouco robustos e com resultados questionáveis, que tal trazermos o debate para a questão da epistemologia? Que tal valorizarmos nossa área de atuação por seus próprios méritos, superando a constante busca de validação por meio de um método que é incapaz de dar conta de toda a complexidade da medicina chinesa? Creio que seria uma postura muito mais coerente e produtiva para todos.
*Obs: antes que algum desavisado me pergunte, não, não sou parente do Edgar Morin! 😂 Na verdade, Morin foi o nome adotado por ele a partir da Segunda Guerra Mundial e seu nome de batismo é Edgar Nahoum.
REFERÊNCIAS DE LIVROS E ARTIGOS
CONTATORE, Octávio Augusto; TESSER, Charles Dalcanale; BARROS, Nelson Filice de. Medicina chinesa/acupuntura: apontamentos históricos sobre a colonização de um saber. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 841-858, jul./set. 2018.
FEYERABEND, Paul. Contra o método. 4. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
GILLES, Donald. The demarcation problem and alternative medicine. Jornadas sobre Karl Popper: Revisión de su legado, Universidade da Coruña, Ferrol, Spain.
MORIN, Edgar. O método 4: as ideias: habitat, vida, costume, organização. 1. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1991.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 2. ed. Brasília, DF: UNESCO, 2000.
MORIN, Edgar. O enigma do homem: para uma nova antropologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.
PALMEIRA, Guido. A acupuntura no Ocidente. Cadernos de Saúde Pública, FIOCRUZ, RJ, v. 6, n. 2, p. 117-128, abr./jun. 1990.
PAUL, Patrick. Saúde e Transdisciplinaridade: A Importância da Subjetividade nos Cuidados Médicos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 2009.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologias do Sul. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2019.