Kotodama, literalmente “espírito da palavra”, é um conceito central na mitologia japonesa e no xintoísmo, bem como nas artes marciais tradicionais japonesas. Curiosamente, um dos termos antigos usados para descrever o Japão é kototama no sakiwau kuni : “a terra onde o kototama traz felicidade”.
A noção de kotodama pressupõe que sons podem afetar objetos e que o uso ritual das palavras pode influenciar nosso ambiente e nosso corpo, mente e alma.
言靈
No kanji, o kotodama é escrito como 言靈. O primeiro kanji, 言 gen, quer dizer fala, palavra. É representado por um retângulo – a boca – com riscos acima – representação das ondas sonoras, a verbalização da palavra. O segundo kanji, 靈 rei, especialmente familiar para os estudantes do Reiki, quer dizer espírito, alma, fantasma. Literalmente, a expressão pode ser traduzida como espírito da palavra e se refere à força viva que anima as palavras.
O poder da palavra
Em muitas tradições espirituais ao redor do mundo, as histórias da Criação são descritas como tendo o início com uma palavra ou música. Essa reverência ao primordial poder criativo do som é a mesma crença que capacita os estudantes de kotodama a aproveitar os mistérios da linguagem para trabalhos esotéricos.
É possível traçar um paralelo do kotodama não verbalizado, kototamagaku ( 言霊学 , “estudo de kotodama “) popularizado por Onisaburo Deguchi, com o estudo da gematria na Kabbalah, onde a composição das palavras é de profundo significado e à cada letra do alfabeto hebraico é atribuído um valor numérico. No caso do kototamagaku a fonologia da língua japonesa é usada como base mística para composição palavras e significados.
Contudo, a observação do kotodama não está reservada apenas aos estudiosos, mas permeia a vivência de toda a população. O xintoísmo é a base espiritual da cultura japonesa e consiste em uma visão de mundo profundamente animista, que atribui um espírito à tudo, incluindo objetos inanimados por exemplo, então é natural que a principal forma de expressão humana seja dotada de um espírito de grande importância na vida diária.
Não há dúvidas de que o poder da palavra seja um conceito universal. Podemos observar semelhanças entre práticas místicas relacionadas à linguagem em outras culturas, como a repetição de mantras, orações, cânticos, entre outros, mas para compreender o kotodama é preciso admitir as particularidades da fala e da escrita japonesas que lhe conferem uma posição de destaque em sua cultura.
A língua japonesa
A partir da linguagem de um povo é possível extrair muitos de seus hábitos e um pouco do que compõe a psique dessa nação.
Pelo fato da língua japonesa não ser muito rica foneticamente, muitas palavras são pronunciadas da mesma forma e podem causar mal-entendidos caso o interlocutor não se mantenha atento. É contra a etiqueta japonesa ser muito direto. Sendo assim, tanto por educação como por conveniência, um discurso pode ser facilmente proferido de forma genérica, de modo a deixar uma mensagem subentendida.
Essencialmente discretos, os japoneses mantém certa desconfiança nas palavras. Por serem muito generalizadas e dependentes do contexto, com frequência eles acham por bem não se embasar por completo no que ouvem ou mesmo no que dizem, pois é difícil ter certeza de que a mensagem foi passada adequadamente. Seria extremamente indelicado questionar o interlocutor sobre isso e, na visão japonesa, a responsabilidade pelas palavras que se profere é única e inteiramente do indivíduo, caso não tenha sido bem sucedido em transmitir o que intencionava, a vergonha e a retratação devem ser absorvidas por ele.
Essa filosofia serve como ensinamento para a educação e consciência do poder da linguagem. Um senso de responsabilidade deve ser adquirido sobre o que se fala, pois as palavras proferidas são o que os demais podem captar da sua personalidade e essência, bem como tudo que as cerca, ou seja, sua postura, entonação, vocábulo, gestos. O conjunto de todos esses fatores compõe a figura que será criada em torno de sua imagem e todo emissor deve cuidar para se fazer entender claramente, do contrário, idéias equivocadas sobre suas afirmações podem ser geradas e, a partir disso, todo um ciclo de influências se formará em torno desse entendimento errôneo que inclusive poderá voltar a prejudicar o próprio indivíduo.
Cultivando a consciência da fala
O cultivo do kotodama é principalmente enfatizado no meio das práticas de artes marciais japonesas, em especial no Aikido, que possui uma profunda base no kotodama. Mas para os não praticantes de artes marciais, um dos exemplos mais famosos e mundialmente conhecidos de um kotodama que carrega a essência do cultivo das virtudes humanas são os Gokai, os cinco princípios do Reiki.
Os Gokai foram desenvolvidos pelo fundador Mikao Usui e são ensinados pelas escolas de Reiki como uma prática diária. Trata-se do kotodama mais difundido do mundo ocidental, que foi traduzido para muitas línguas, embora seja recomendada a repetição em japonês.
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Kyō dake wa
Só por hoje
Okoru-na
Sou calma(o)
Shinpai suna
Confio
Kansha shite
Sou grata(o)
Gyo-wo hage me
Trabalho honestamente
Hito ni shinsetsu ni
Sou gentil com todos os seres
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REFERÊNCIAS DE LIVROS E ARTIGOS
Power of words, Kotodama – Iromegane
Sobre a lingua japonesa e o kotodama – Gouki Shinryu Heihou
Foundations of Reiki Ryoho: A Manual of Shoden and Okuden – Nicholas Pearson
Kotodama: the multi-faced Japanese myth of the spirit of language – Oxford University Press’s
Academic Insights for the Thinking World
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