Conheci a história das bhikkhunis por acaso em um dia muito especial: o primeiro aniversário que passei 100% sozinha, vivendo num fuso horário 10 horas adiantado da minha família e amigos. Foi uma experiência muito estranha. Mesmo acostumada a viajar só, nesse dia me senti muito solitária. Era minha última tarde em Bangkok.
Não sabia muito bem o que fazer e decidi pegar um caminho diferente para chegar até o ponto de ônibus próximo ao hostel. Estava um calor abafado, as nuvens anunciavam um temporal e eu passava pelo complexo de templos budistas dos arredores com uma certa pressa pra pegar logo o ônibus. Passei reto por eles, com uma pulga atrás da orelha… e aí dei meia volta. Precisava dar uma olhada antes de ir embora.
A surpresa
Parei bem em frente ao Wat Thepthidaram Worawihan. Um templo bem pequeno e modesto comparado aos deslumbrantes que visitei durante minha estadia na cidade. Lá dentro encontrei um salão singelo, de paredes vermelhas e empoeiradas, com tinta descascando. Bem detonado e esquecido, como a história das figuras ali representadas.
Para a minha surpresa, dei de cara com nada menos do que cinquenta e duas estátuas de mulheres. Pela primeira vez vejo estátuas de figuras femininas em um templo tailandês e fico absolutamente eufórica. Não só temos figuras femininas, mas em quantidade e variedade. São quarenta e nove sentadas e três em pé, retratadas em diferentes posturas. Meditando, entoando cânticos, conversando, fumando, costurando e lendo.
O ponto mais curioso desse cenário é o fato dessas mulheres estarem num contexto monástico. Até aquele momento eu não conhecia a história de religiosidade e resistência das bhikkhunis. Atualmente a vida de monge (bhikkhu) é uma realidade apenas para os homens na Tailândia.
Foi muito emocionante andar por essas mulheres e tentar imaginar as vidas que elas levaram. Senti que me acolhiam e abençoavam o dia do meu aniversário, que não estava lá muito animado. Fica o registro do meu rostinho emocionado aí em cima, feliz da vida pelo senso de direção bem orientado.
O Templo da Filha Celestial
Bem na porta de entrada há um cartaz explicando a origem dessas estátuas num inglês de google translator muito difícil de decifrar. Segundo o cartaz, Wat Thepthidaram Worawihan significa Templo da Filha Celestial em thai. Foi construído em 1836 pelo Rei Rama III e dedicado à sua filha mais velha, a princesa Kroma Muen Apsomsudathep. As estátuas contidas nele são consideradas extremamente raras e não consegui informação sobre nenhum outro espaço que homenageie a vida das bhikkhunis na Tailândia.
Mahāpajāpatī Gautamī e marcha das mulheres
As 52 monjas estão dispostas ao redor de uma figura central: Mahapajapati Gotami. Segundo o cânone budista, ela foi a liderança das primeiras bhikkhunis a serem ordenadas por Buda.
Mahapajapati era irmã da Princesa Maya, a mãe do menino Sidarta (o Buda). Maya faleceu logo após o parto e Mahapajapati se encarregou da criação do sobrinho junto com seus outros dois filhos. A trajetória de Sidarta é cheia de detalhes interessantes, vale um estudo à parte. O que interessa saber aqui é que, aos 70 anos, após a morte de seu marido, Mahapajapati toma a decisão de adotar o caminho de ascetismo pregado por Buda.
Ela pede ao sobrinho para formar uma ordem feminina para que as mulheres também pudessem devotar plena dedicação ao desenvolvimento espiritual. O Buda recusou. Ela insistiu por mais duas vezes e o homem que ela criou como filho se manteve irredutível, sem dar nenhum motivo para sua recusa. Deixou a tia pra trás e seguiu com a peregrinação. Mas ela não desistiu.
Mahapajapati Gotami pedindo a permissão de Buda para ser ordenada
Mahapajapati decidiu raspar os cabelos , vestir-se de ocre como um monge e organizar uma ação de impacto. Assim como ela, muitas mulheres queriam aderir ao budismo e abandonar a vida doméstica e a acompanharam numa jornada de centenas de quilômetros de caminhada até o monastério Jetavana, onde o Buda ensinava. Os relatos afirmam que 500 mulheres se juntaram à causa e multidões de curiosos as acompanharam, no que pode ser considerada a primeira marcha de mulheres em busca de igualdade de direitos de que se tem registro.
O Buda percebeu sua determinação e foi convencido de que, tendo vivido como mendicantes por semanas, estavam prontas para empreender uma vida monástica. Após a hábil persuasão de um de seus discípulos mais próximos, seu primo Ananda, o Buda concedeu permissão às mulheres para serem ordenadas como as primeiras bhikkhunīs.
Uma vida menos desigual
Mahapajapati Gotami e quinhentas outras mulheres estabeleceram um novo precedente para a igualdade social. Essas mulheres não apenas buscaram a libertação espiritual, mas também criaram para si um caminho de vida alternativo radicalmente diferente dos papéis sociais atribuídos a elas. Numa sociedade patriarcal como a indiana, há 2500 anos atrás, era impensável a presença feminina no contexto religioso e muito menos envolvendo total abdicação da vida matrimonial e familiar.
Monjas theravada do Sri Lanka
Tendo em vista esse cenário histórico fica mais fácil de entender as condições impostas às bhikkunis. Hierarquicamente elas precisavam respeitar as ordens masculinas e preceitos adicionais como não poderem viver a mais de 6 horas de viagem de monges. Isso faz algum sentido pois na época (e infelizmente ainda hoje) uma mulher que tivesse abandonado a vida familiar e doméstica seria de qualquer outra forma assediada e perseguida. Pela associação com os monges elas poderiam passar por essa mudança de vida e papel social com maior segurança, então certas práticas que as mantinham submissas aos monges eram justificadas.
As Bhikkhunis na atualidade
A tradição seguiu principalmente em outros ramos do budismo como o Mahayana, que se espalhou pela China e outros países do Extremo Oriente. Existe uma grande quantidade de monjas plenamente respeitadas nessas regiões. Já no budismo Theravada, dominante nos países do Sudeste Asiático, as ordens de bhikkhunis são enorme motivo de polêmica e atualmente só o Sri Lanka possui uma comunidade propriamente aceita.
O motivo é a estrutura rigidamente fundamentalista, baseada no conjunto de regras estabelecido logo após a morte de Buda – uma maneira de justificar a recusa dos homens em abrir seus monastérios para a presença de mulheres. O argumento de não aceitar novos ordenamentos de mulheres é que a ordem teria sido extinta e portanto não haveria como aceitar novas monjas, já que o ordenamento requer a presença de uma bhikkhuni. Por conta de um período de guerra, seca e fome, as ordens de homens e mulheres foram extintas no Sri Lanka no século 11. Para restaurar a comunidade, foi preciso a atuação de monges de outros reinos, mas não haviam ordens femininas fora do Sri Lanka e portanto foram consideradas extintas.
Monjas não reconhecidas pela Sangha Tailandesa
A Sangha Tailandesa proíbe estritamente que mulheres sejam ordenadas por esse motivo. As monjas não são aceitas e podem inclusive ser punidas (embora não seja a prática) já que é crime se passar por um monge em território tailandês. Além de poderem ter a entrada recusada em espaços sagrados, são impedidas de usufruir de inúmeros direitos que os monges possuem, como transporte público gratuito, assentos reservados em locais públicos, reconhecimento oficial do governo e especialmente o status elevado que a classe possui na sociedade.
Assim, as mulheres tailandesas que buscam trilhar esse caminho possuem uma série de restrições. Algumas viajam para o Sri Lanka, onde se restabeleceu recentemente a ordem de Bhikkhunis. Dhammananda, a primeira bhikkuni tailandesa ordenada em 2003, hoje lidera grupos de bhikkhunis no país. Apesar de possuirem apoio das populações locais, não são reconhecidas pelos monges.
A realidade das Mae Ji
A outra opção que tem sido adotada há muito mais tempo pelas tailandesas é a vivência como Mae Ji, num status entre um seguidor leigo e monge. Elas geralmente vivem sobre as premissas de um monastério e servem aos monges, cozinhando, limpando e atuando nas atividades práticas em geral. Seguem a rigor os mesmos preceitos que os monges, vivem com os cabelos raspados e vestes brancas para diferenciá-las do clero. Lembrando que Mae em thai significa mãe…
Noviços no Doi Suthep em Chiang Mai Mae Ji junto aos leigos no canto
Vi algumas delas em templos. É triste observar os monges sentados em um tablado elevado durante as cerimônias enquanto uma Mae Ji realiza as mesmas atividades religiosas junto ao povo leigo, afastada dos monges. Os pequenos noviços com menos de dez anos de idade possuem um papel de destaque enquanto uma Mae Ji que pratica os oito preceitos há décadas é totalmente marginalizada.
A luta que segue
Nesse dia das mulheres, 8 de março de 2020, decidi compartilhar essas descobertas na intenção de enaltecer grandes feitos de nossas predecessoras. Infelizmente vemos que ainda hoje muitas mulheres precisam lutar para fazer valer a conquista de Mahapajapati Gotami e suas quinhentas seguidoras, 2500 anos depois.
Não é de se admirar que a entrada das mulheres na vida monástica seja tão combatida. A figura feminina que se posiciona alheia à função de mãe e provedora de lares é uma ameaça à estrutura do patriarcado e claramente a veia patriarcal fala mais alto do que qualquer filosofia e estilo de vida que um homem possa adotar.
Tenhamos como inspiração essas bhikkhunis que marcharam por uma vida livre e adequada aos seus ideais e objetivos de vida. Que assim como elas possamos transformar os espaços em que vivemos.
1 comentário
Ajaan Brahmavamso teve uma contribuição histórica na restauração da Sangha das bhikkhunis no Budismo Theravada.
Inicialmente em 1997 foi estabelecido na Australia um monastério para mulheres, (Dhammasara Nun’s Monastery), que durante muito tempo esteve sob a liderança da Venerável Vayama.
No dia 22 de Outubro de 2009 ocorreu no Monastério Bodhinyana em Perth a primeira ordenação de bhikkhunis na tradição Theravada na Austrália, sendo ao mesmo tempo a primeira ordenação de bhikkhunis na tradição das florestas da Tailândia. As Veneráveis Vayama junto com as Veneráveis Nirodha, Seri e Hasapanna foram ordenadas com a presença de uma sangha de bhikkhus e bhikkhunis de acordo com as regras do Vinaya em Pali. A Venerável Tathaaloka atuou como preceptora na cerimônia de ordenação.
Para mais informações sobre esse histórico acontecimento segue o link abaixo:
https://www.acessoaoinsight.net/arquivo_textos_theravada/Brahmavamso.php#mulheres